Deus Seja Louvado: O Debate Sobre a Frase nas Notas do Real

Deus Seja Louvado: O Debate Sobre a Frase nas Notas do Real

A presença da frase "Deus seja louvado" nas cédulas do Real, a moeda oficial do Brasil, permanece como tema de debate mais de três décadas após sua inclusão. O questionamento sobre sua permanência expõe uma tensão antiga na identidade brasileira: o equilíbrio entre o Estado laico previsto na Constituição e a forte tradição religiosa que marca a sociedade.

A origem da inscrição remonta ao governo de José Sarney, entre 1985 e 1990. Em meio à crise econômica e ao lançamento do Cruzado, moeda criada para enfrentar a hiperinflação, o então presidente determinou a inclusão da frase. A primeira emissão com o novo padrão começou a circular em fevereiro de 1986.

Embora tenha surgido num momento de instabilidade, a frase não era apenas um gesto de fé pessoal. Especialistas apontam que sua inclusão teve também um valor simbólico, com o objetivo de reforçar a confiança na nova moeda e transmitir uma mensagem de estabilidade moral em um país economicamente fragilizado.

Antes disso, o Brasil já havia vivido períodos de associação entre Estado e religião. Durante o Império, a Constituição de 1824 declarava o catolicismo como religião oficial. Apesar disso, as moedas imperiais não traziam lemas explícitos como "Deus seja louvado". O máximo que aparecia eram abreviações como “Pela graça de Deus”, acompanhando o nome do imperador.

Esse dado histórico contraria a ideia de que estados religiosos necessariamente estampam frases religiosas em seu dinheiro. A inclusão da expressão nas cédulas modernas foi uma decisão política específica, tomada num contexto distinto e sem precedentes diretos na história monetária brasileira.

Em 1994, no lançamento do Real, a frase chegou a desaparecer temporariamente das novas cédulas. As primeiras notas de R$ 1, R$ 5, R$ 10, R$ 50 e R$ 100 foram emitidas sem a inscrição. Segundo reportagem de O Estado de S. Paulo na época, a omissão ocorreu por falta de orientação formal do Banco Central à Casa da Moeda. O diretor de produção da Casa da Moeda, Tarcísio Caldas Pereira, confirmou que não recebeu ordem específica para incluir a frase. A ausência foi logo corrigida, e as edições seguintes voltaram a trazer o texto religioso.

A partir de então, a manutenção da frase passou a seguir uma lógica de continuidade administrativa, sustentada por costume e pela ausência de uma norma que a proibisse. Na prática, o país permaneceu com a inscrição, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988, que reafirma o caráter laico do Estado brasileiro.

Em 2012, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo abriu uma frente judicial para questionar a permanência da expressão nas cédulas. A ação foi conduzida pelo então procurador regional dos direitos do cidadão, Jefferson Aparecido Dias. Segundo o MPF, a frase violava o princípio da laicidade ao privilegiar uma concepção monoteísta de fé, desconsiderando ateus, agnósticos e adeptos de outras crenças.

A ação propunha a retirada da frase e apresentava uma provocação retórica para reforçar o argumento: "Se aceitarmos 'Deus seja louvado', por que não permitir uma cédula com a inscrição 'Deus não existe'?", questionava o procurador.

O Banco Central respondeu com dois principais argumentos. O primeiro foi jurídico: o preâmbulo da Constituição de 1988 menciona que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus". O segundo foi prático: o custo estimado para modificar as cédulas chegaria a R$ 12 milhões. O órgão também alertou para o risco de "intranquilidade social" caso a frase fosse retirada.

As decisões judiciais que se seguiram reforçaram a interpretação de que a expressão não viola o princípio da laicidade. Uma decisão da Justiça Federal citou o exemplo do Reino Unido, onde, apesar da existência de uma religião oficial, há ampla liberdade religiosa. A sentença também destacou que símbolos religiosos, como o Cristo Redentor e o nome de diversas cidades brasileiras, fazem parte da identidade cultural do País.

O Supremo Tribunal Federal (STF) também abordou o tema de forma indireta em julgamento de 2023 sobre a presença de símbolos religiosos em prédios públicos. Por unanimidade, o STF decidiu que a exibição de crucifixos e outras imagens é compatível com a laicidade, desde que representem a tradição cultural da sociedade e não imponham práticas religiosas.

O ministro Cristiano Zanin, relator do caso, ressaltou que a Constituição protege a liberdade de crença e que tais símbolos não obrigam o cidadão a seguir determinada fé. O STF, no entanto, invalidou normas que tornavam a exibição de símbolos religiosos uma obrigação legal, reforçando a ideia de que o Estado deve manter neutralidade ativa.

No campo legislativo, a tentativa de transformar a presença da frase em norma foi interrompida. O Projeto de Lei 4710/2012, do deputado Eduardo da Fonte (PP-PE), buscava tornar obrigatória a impressão de "Deus seja louvado" em todas as cédulas. O texto foi arquivado em 2013 por inadequação financeira e orçamentária, sem análise de mérito constitucional.

Internacionalmente, o Brasil não está isolado. Diversos países mantêm lemas religiosos em suas moedas, como os Estados Unidos, com o "In God we trust", e a Nicarágua, com o "En Dios confiamos". No Reino Unido, a monarquia adota o lema "Dieu et mon droit" (Deus e meu direito). Polônia e Holanda também seguem essa tradição.

Essa convivência entre Estado laico e expressões religiosas em símbolos oficiais reflete um fenômeno global, onde laicidade e patrimônio cultural frequentemente se cruzam. O caso brasileiro, com sua frase nas cédulas, insere-se nesse contexto internacional de soluções políticas e jurídicas diversas para uma mesma questão: como equilibrar tradição, fé e neutralidade estatal.

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    Muito bom

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    Tenho algumas moedas raras vcs compram?

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