Um esboço preliminar divulgado pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos reacendeu um antigo debate na numismática americana. A proposta, parte das comemorações dos 250 anos da independência em 2026, mostra um desenho que parece incluir o perfil do presidente Donald Trump em uma moeda de US$ 1.
O Tesouro confirmou que o modelo é apenas um rascunho e que o desenho final ainda não foi escolhido. Mesmo assim, a imagem publicada pelo tesoureiro Brandon Beach em uma rede social foi suficiente para provocar reações de especialistas e juristas.
O esboço traz, na frente, o perfil de um homem com traços semelhantes aos do presidente, sob a palavra Liberty e as datas “1776–2026”. No verso, a figura aparece de corpo inteiro, com o punho erguido diante da bandeira americana e a inscrição Fight, Fight, Fight, frase usada por Trump após o atentado que sofreu em 2024.
Tradição contestada
Na história da moeda americana, a presença de pessoas vivas é tabu. Desde o século 18, a política do U.S. Mint (Casa da Moeda) proíbe o retrato de figuras em exercício de poder, para evitar a personalização do dinheiro — prática comum em monarquias.
A única exceção registrada ocorreu em 1926, quando o então presidente Calvin Coolidge apareceu ao lado de George Washington em uma moeda comemorativa do 150º aniversário da independência. O episódio foi considerado constrangimento institucional e nunca se repetiu.
Durante o bicentenário, em 1976, o Tesouro escolheu símbolos neutros — o Sino da Liberdade e a Lua — e evitou qualquer associação política.
Brecha na lei
A proposta atual baseia-se em uma interpretação do Circulating Collectible Coin Redesign Act de 2020, lei que autoriza novas moedas comemorativas entre 2022 e 2030. O texto proíbe “retrato ou busto de pessoa viva” apenas no verso das moedas de 2026, sem mencionar o anverso.
Para o numismata Michael Moran, ex-diretor do U.S. Mint Museum, a omissão é “uma brecha perigosa” que contraria a intenção histórica da lei. “A ausência de proibição explícita não deve ser interpretada como autorização”, afirmou em entrevista a colecionadores.
O detalhe técnico de mostrar o presidente de corpo inteiro no verso também divide opiniões. Juristas dizem que a figura amplia o retrato e tenta escapar da definição legal de “busto”, sem deixar de ser reconhecível.
Avaliação suspensa
A análise formal do projeto está paralisada por causa da suspensão parcial do governo. Os comitês que avaliam desenhos — o Citizens Coinage Advisory Committee (CCAC) e a U.S. Commission of Fine Arts (CFA) — ainda não emitiram parecer.
Esses órgãos examinam o mérito artístico e histórico de cada proposta e são responsáveis por garantir que os desenhos reflitam “dignidade e neutralidade”. Ex-integrantes do CCAC consideraram precipitada a divulgação do esboço nas redes sociais antes da revisão técnica.
Reação entre colecionadores
A comunidade numismática recebeu o rascunho com cautela. Em fóruns especializados, alguns colecionadores elogiaram a qualidade artística do desenho, enquanto outros criticaram a personalização política. “Se confirmado, seria a ruptura mais significativa desde Coolidge”, escreveu o historiador Neil Shafer, editor da revista Numismatic News.
Precedentes e próximos passos
Nos Estados Unidos, moedas comemorativas seguem um processo rigoroso que inclui concursos públicos e consulta a entidades de arte. Para os 250 anos da independência, o Tesouro prometeu priorizar “símbolos de liberdade e unidade nacional”.
O Congresso ainda pode rever a lei de 2020 para fechar brechas e definir, de forma explícita, a proibição de retratos vivos em qualquer face das moedas.
Enquanto o processo não avança, o chamado Semiquincentennial Dollar — ainda apenas um esboço — coloca em disputa um princípio histórico da numismática americana: a separação entre arte monetária e poder político.